O conceito jurídico de pirâmide financeira com criptomoedas e a diferença entre fraude e oportunidade
A evolução das tecnologias somada ao fato de que existem inúmeras empreitadas criminosas no Brasil que utilizam ou que simulam a utilização de ativos digitais e criptoativos, tornou imperativa a necessidade de se criar um tipo penal específico e com penas mais rigorosas do que as preexistentes para punir os indivíduos responsáveis pela criação de movimentos fraudulentos de promessa de ganho fácil, que informalmente ficaram conhecidos como “pirâmides financeiras”.
Nesse sentido, a Lei n.º 14.478/22, que além de estabelecer diretrizes a serem observadas na prestação de serviços que utilizem ativos virtuais e na regulamentação das prestadoras de serviços dessa área, alterou o Código Penal para prever o crime de fraude com a utilização de ativos virtuais, valores mobiliários ou ativos financeiros, conduta tipificada na redação do artigo 171-A e cuja pena é reclusão, de quatro a oito anos, e multa.
Vejamos:
Art. 171-A. Organizar, gerir, ofertar ou distribuir carteiras ou intermediar operações que envolvam ativos virtuais, valores mobiliários ou quaisquer ativos financeiros com o fim de obter vantagem ilícita, em prejuízo alheio, induzindo ou mantendo alguém em erro, mediante artifício, ardil ou qualquer outro meio fraudulento.
Pena — reclusão, de 4 (quatro) a 8 (oito) anos, e multa.
Outro motivo relevante para sustentar a criação desse novo tipo penal, era a grande subjetividade e aleatoriedade dos operadores do Direito em tipificar ou, pelo menos, rotular algo como uma “pirâmide financeira”.
Ocorre, contudo, que trata-se de um termo genérico, envolto por controvérsias e intrinsecamente dotado de grande vagueza, o que é completamente descolado das regras de legalidade que regem o exercício da pretensão punitiva do Direito Penal.
Até o surgimento do art. 171-A, do Código Penal, os profissionais do Direito, muitas vezes reproduzindo a abordagem superficial trazida pela mídia e pelos meios de comunicação não especializados, tinham dificuldade em adequar determinada(s) conduta(s) aos tipos penais dos artigos 171 do Código Penal, do artigo 2º, IX, da Lei n.º 1.521/1951 e do artigo 16 da Lei n.º 7.492/1986.
Espera-se que essa falta de rigor e discernimento (que é exigido ao profissional que atua na área) tenha findado, visto que as ações praticadas a partir da promulgação da Lei n.º 14.478/22, cuja vacatio legis findou em 19/03/2024, passam a se adequar ao tipo penal do art. 171-A, CP.
Exige-se, também, que o operador do Direito tenha a capacidade de diferenciar operações legítimas que se valem de criptomoedas, tecnologia blockchain e ativos digitais em amplo sentido das operações ilícitas, que se valem de meios enganosos e ardis.
O Prof. Dr. Spencer Sydow, na 5ª edição do seu Curso de Direito Penal Informático — Partes Geral e Especial, Processo Penal Informático e Cibercriminologia, faz importantes comentários sobre o tema:
“não há dúvidas de que era preciso que surgisse um tipo penal específico e com pena mais gravosa para esquemas de pirâmide e movimentos fraudulentos de promessa de ganho fácil. Contudo, é preciso avaliar as posturas das empresas com o máximo de cuidado. A volatilidade do mercado de criptomoedas somado à previsibilidade de certas altas de preços (como por exemplo, o halving do Bitcoin) e a possibilidade de se automatizar compras e vendas legítimas de criptoativos usando movimentos de especulação são movimentos legítimos como o são movimentos de compra e venda de ações. Não se pode demonizar ações legítimas como a venda de produtos legais e autorizados, nem colocar na mesma condição de culpabilidade o criador do esquema fraudulento e as pessoas cooptadas que terminam por auxiliar o esquema com boa fé [1]”.
Acredita-se que esse pobre entendimento de questões legais alimenta a muito difundida visão distorcida que o indivíduo leigo possui do Bitcoin e das criptomoedas: a de que esses ativos digitais são destinados apenas para criminosos.
Sabe-se, contudo, que esse pensamento está muito afastado do cenário que foi criado após o advento do Bitcoin, que, através da utilização da tecnologia DLT, permitiu a criação de um sistema de pagamentos descentralizado, seguro, eficiente e que independe de terceiros para seu funcionamento [2].
A falta de conhecimento acerca do funcionamento dos ativos digitais e da tecnologia blockchain, a pobreza intelectual que a grande mídia trata o tema e a notória baixa educação financeira da maior parte da população brasileira contribui para difundir a incorreta ideia de que o Bitcoin seria destinado à criminalidade.
Além disso, serviu para fortalecer o entendimento de que qualquer iniciativa que proponha investimentos com criptoativos, criptomoedas e ativos digitais seja uma “pirâmide financeira”.
É evidente que essa nefasta prática criminosa deve ser duramente repudiada e combatida. Para que isso aconteça, é imperativo entender o que é uma pirâmide financeira, tanto no seu conceito jurídico, quanto no seu conceito econômico-operacional, evitando, assim, a realização da demonização indiscriminada de qualquer proposta relacionada ao uso de criptomoedas e ativos digitais, sob pena de prejudicar o crescimento saudável e a consolidação do mercado de ativos digitais brasileiro.
[1] SYDOW, Spencer Toth. Curso de Direito Penal Informático – Partes Geral e Especial, Processo Penal Informático e Cibercriminologia. 5ª Edição – São Paulo: Tirant Lo Blanch, 2024. P. 576. [2] Corroborando com isso, a Chainalysis, no seu último Crypto Crime Report[2], registrou, no ano de 2023, apenas 0,34% das transações on-chain de Bitcoin estavam associadas a atividades ilícitas. Disponível em: https://go.chainalysis.com/crypto-crime-2024.html