entenda por que investir não é aposta
Coluna escrita em coautoria com Graziele Piva, psicanalista, fundadora e CEO na Youniq.
Os livros-textos de finanças, economia e investimentos geralmente idealizam o investidor como alguém puramente racional, frio e calculista que investe em longo prazo, considerando sempre uma carteira diversificada de investimentos, a fim de minimizar os riscos e maximizar os seus retornos.
Seria como se todos fossem arquetipicamente um Warren Buffett, o qual é conhecido por carregar posições de investimento por décadas e não se preocupar com os altos e baixos da economia e nem com o preço de suas ações.
O oráculo de Omaha, como ele é conhecido, inclusive chegou a afirmar que se você é um comprador líquido de ações (compra mais que vende) um mercado em baixa é bom, pois você pode comprar mais ações baratas.
Nesta lógica, apenas vendedores líquidos de ações deveriam se preocupar com mercados em baixa.
Voltando aos livros-textos, os investidores seriam verdadeiros icebergs emocionais, completamente racionais e maximizadores de sua riqueza.
Zero espaço, portanto, para vícios com day trade de ações, commodities ou criptomoedas, certo?
Não é bem assim
Essa visão idealizada do investidor nos livros-textos foi bastante desafiada pelas chamadas finanças comportamentais, as quais inclusive renderam prêmios Nobel de Economia, para Daniel Kahneman em 2002, Robert Shiller em 2013 e Richard Thaler em 2017.
A base das finanças comportamentais é que os investidores continuam sendo humanos ao investir, ou seja, sujeitos a vieses, erros de interpretação, dificuldade emocional e inclusive vícios.
Nem diversificados e nem em longo prazo
Diversas pesquisas apontam que os investidores individuais frequentemente possuem apenas uma ou duas ações em seus portfólios, passando longe de estarem diversificados e assim não diluindo seus riscos.
Essa concentração aumenta significativamente o risco da carteira e reduz o potencial de ganho sobre o risco.
Ademais muitos destes mesmos investidores estão bastante focados no curto prazo, o que os leva a um número excessivo de negociações, ou seja, compram e vendem mais do que deveriam tentando acompanhar as notícias de curto de prazo.
Esse comportamento leva a altos custos de transação e performance inferior da sua carteira em relação ao mercado.
Preferem ações especulativas em day trade ao investimento mais seguro
Os investidores individuais ainda, muitas vezes, preferem as ações mais especulativas e arriscadas do que as mais consolidadas e tradicionais.
Preferem ações de empresas pequenas, em estresse financeiro, recuperação judicial e diversos outros problemas, as quais possuem uma pequena probabilidade de um alto retorno financeiro.
A contrapartida é que há uma alta probabilidade de perda financeira.
O mesmo vale para a maioria das criptomoedas, commodities e outros ativos, especialmente quando negociados na forma de day trade.
A semelhança com as ‘bets’ não é mera coincidência.
Nos cassinos, loterias e apostas esportivas a lógica é a mesma: pequena probabilidade de um grande ganho e alta chance de uma perda. Investir desta forma não é racional.
A irracionalidade deste tipo de investidor
As pesquisas científicas sobre essa irracionalidade apontam principalmente três causas: a primeira é um excesso de confiança do investidor na sua própria análise e capacidade de prever o mercado.
A segunda é que esses investidores não conseguem estimar corretamente as altas probabilidades de perda associadas a essas ações especulativas
Eles concentram sua atenção apenas no alto retorno potencial, mas sem associá-lo corretamente à baixa probabilidade de ocorrência.
A terceira, e mais perigosa, é que esses investidores apreciam os ativos altamente especulativos e/ou operações de day trade, como forma de jogo mesmo.
Similarmente ao divertimento que muitas pessoas sentem por cassinos, jogos de azar e apostas esportivas.
Pesquisas nos Estados Unidos, Alemanha e Taiwan apontam que nas semanas que as loterias pagam os prêmios mais altos do ano, o volume de negociação de ações cai entre 5% a 10%.
Dessa maneira, corroborando que parte dos investidores encara as ações como um jogo similar a loteria.
Day trade pode ser viciante
Dado que uma parcela de investidores utiliza os seus investimentos como forma de jogo, em ativos e/ou estratégias muito arriscadas, de curto e curtíssimo prazo, é uma consequência triste, porém lógica, que possam sofrer de vício nesta prática, similarmente ao vício em jogos.
As consequências, lamentavelmente, vão além de apenas perdas financeiras, com deterioração de sua saúde física, problemas familiares e sociais, depressão e mesmo comportamentos autodestrutivos.
Leia também: Day trade não funciona, desculpem-me pela má notícia.
Perspectiva psicanalítica e reflexão humanizada
A psicanálise oferece uma visão única sobre as compulsões, identificando-as como tentativas inconscientes de resolver conflitos internos e preencher vazios emocionais.
Segundo Freud, as ações repetitivas ou compulsivas podem ser manifestações de pulsões não resolvidas que procuram alívio imediato para ansiedades profundas (Freud, 1920).
Em termos de investimentos e apostas, o ato de arriscar e ganhar pode ativar o sistema de recompensa cerebral, de maneira semelhante ao que ocorre com outras dependências.
Psicanálise e o papel do ego no investimento
Além das perdas financeiras, o comportamento de risco em investimentos muitas vezes reflete falhas humanas profundas e uma busca inconsciente por validação.
Na psicanálise, entendemos que o ego humano é marcado por desejos de controle e reconhecimento.
Quando as decisões de investimento se tornam uma busca por preencher essas necessidades, o risco de desenvolver uma relação compulsiva com o mercado financeiro se torna real.
Investimentos de alto risco, especialmente o day trade, muitas vezes atraem o investidor pelo sentimento de poder e controle momentâneo.
No entanto, esse controle é ilusório, pois, na maioria das vezes, o mercado é imprevisível.
Freud destacou que nossos desejos inconscientes podem nos levar a padrões repetitivos de comportamento que tentam, sem sucesso, satisfazer essas necessidades inatingíveis.
A busca pela afirmação e a ilusão de controle
No fundo, o ego busca ser reconhecido e afirmado – o que frequentemente leva o investidor a querer “ganhar” do mercado, ver seu próprio valor refletido nos lucros e evitar a percepção de fracasso.
Essa busca pela afirmação pode transformar o investimento em uma arena de validação pessoal.
Quando os ganhos surgem, o ego é fortalecido; mas, quando as perdas ocorrem, o golpe à autoestima pode ser tão profundo que o indivíduo recorre ainda mais ao mercado para tentar compensar, gerando um ciclo destrutivo.
Falha humana e aceitação da vulnerabilidade
Esse ciclo de tentativa e erro, de ganho e perda, é permeado pelas nossas falhas enquanto seres humanos.
No entanto, a vulnerabilidade, a necessidade de aceitação e o medo do fracasso são traços comuns a todos nós.
Reconhecer nossas limitações e falhas, assim, é o primeiro passo para evitar que o ego nos conduza a armadilhas emocionais no mercado financeiro.
Ao investir, é essencial lembrar que a inteligência financeira vai além do lucro imediato.
Ela envolve autoconhecimento, aceitação das próprias falhas e a capacidade de reconhecer que o investimento não define o valor pessoal de ninguém.
Essas reflexões humanizadas mostram que o desejo de controlar e vencer o mercado muitas vezes é mais uma projeção das inseguranças e do ego do que uma necessidade financeira.
A psicanálise nos convida a olhar para essas motivações ocultas e entender que o autocuidado e o equilíbrio emocional são tão importantes quanto os ganhos materiais.
Especialmente em um ambiente tão volátil e desafiador quanto o dos investimentos de alto risco.
Investimentos são para trazer bem-estar e não sofrimento
Assim, o grande objetivo dos investimentos é trazer bem-estar ao investidor e não sofrimento.
Ao focar em longo prazo com uma carteira diversificada, o investidor possui uma boa probabilidade de construir patrimônio ao longo do tempo.
Com isso levando à independência financeira, aposentadoria confortável e outros diversos benefícios.
Não troque esse futuro promissor por uma visão de investimento como jogo em curto prazo.
As consequências serão péssimas, tanto financeiramente, quanto para a sua saúde física e mental.
Caso você sinta que está entrando ou já entrou nesta dinâmica de investimento como substituto de jogo de azar, não hesite, procure imediatamente ajuda de profissionais especializados como médicos, psicólogos e psicanalistas.
Portanto, o vício em jogo é muito sério e pode destruir a sua vida.
Os investimentos são instrumentos para levar as pessoas a uma vida melhor e mais feliz quando feitos de forma correta. Não o contrário.
Isto é Inteligência Financeira.