Do corte de gastos ao fim da jornada 6 x 1 sobram soluções
Está em um livro de Noam Chomsky a seguinte frase: “É necessário, também, instigar a população para que apoie aventuras externas”. Ele se referia aos Estados Unidos quando da participação na Primeira Guerra Mundial. E em tantas outras guerras. O foco do raciocínio era a busca de consenso em torno de um tema específico capaz de legitimar ações do governo central. Isso foi escrito pelo filósofo e ativista político em 2002. Mas no Brasil de 2024, afundado até o pescoço (apenas) naquilo que repercute nas redes sociais, isso nunca foi tão verdade. Da escala 6 x 1 ao corte de gastos, o que se viu no país nas últimas semanas foi uma guerra de narrativas em busca de consenso a todo custo e cujo objetivo é inalcançável: obter uma solução (mágica?) em questão de minutos – o mesmo tempo para um post ‘viralizar’ nas redes.
Então, até o último fim de semana, a discussão girava em torno do pacote de cortes de gastos capitaneado pelo ministério da Fazenda. Os economistas começaram o coro do ‘tem de cortar’, os analistas dos bancos e o mercado em geral seguiram o fluxo com estudos embasados a respeito. Chegou-se até em um número: pra começar, R$ 30 bilhões.
A tesoura no gasto equilibraria a economia em torno da meta fiscal. De quebra, o governo passaria credibilidade de que está disposto a ter uma administração responsável. O prêmio final seria manter a inflação sob controle. Argumentos certos.
Argumentos certos para os cortes de gastos
De fato, a inflação não é fonte de preocupação à toa.
Nós brasileiros sabemos, ou deveríamos saber, desde o Plano Real, e principalmente por causa dele, que a inflação deve ser controlada a todo custo.
Assim, o fantasma da inflação alta assusta. E deve mesmo. A perspectiva do Boletim Focus da última semana aposta em inflação de 5,62% no fim do ano.
É bem mais que o teto da meta perseguida pelo Banco Central de 4,5%. É preciso atenção pois como a série de podcasts ‘Plano Real: a moeda que mudou o Brasil’ mostrou quem perde preços altos é o pobre. Ou o mais pobre.
Então, passou-se a discutir todos os dias o ‘tem de cortar’. ‘Tem de cortar’, ‘tem de cortar’, ‘tem de cortar’… a impressão que dá é que só a saída do Gabigol do Flamengo causou mais celeuma nas últimas semanas.
Mas a questão é? Como você corta R$ 30 bilhões?
Não é simples.
O governo vai mexer em programas sociais? Quais? De que forma? Vai haver cortes do que o presidente Lula chamou de excessos no Judiciário e no Congresso Nacional? Não é simples. Algum setor empresarial está disposto a abrir mão de subsídios?
Depois do corte que não veio, a jornada de trabalho que não é
E como não houve solução mágica para o corte de gastos, a internet cansou. Como sempre cansa.
E passou a discutir outro assunto muito importante. Mas que não tem solução fácil. A mudança da jornada de trabalho do brasileiro. Hoje, a lei determina seis dias de trabalho para um de folga. E isso pode mudar por meio de uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC).
Mas também não é simples. Muda-se então para uma jornada de 36 horas semanais contra as 44 atuais. Trabalha-se quatro dias, folga-se os outros três. Para quem acompanha a avalanche de relatos de pessoas com problemas psicológicos por conta do trabalho, esse é um argumento mais do que suficiente para a mudança.
Mas é preciso discutir.
Então, o que os empresários sérios pensam a respeito? De que forma os empreendedores de verdade analisam o assunto? Eles podem ser prejudicados? E quais efeitos colaterais podem surgir para os próprios trabalhadores a partir da mudança.
Assim, de novo. É válido discutir a proposta de alteração. Mas leva tempo encaixar uma solução.
A democracia não voltou quando deveria voltar: um ano depois
Dessa maneira, para aqueles que não se lembram, o Brasil viveu uma ditadura entre os anos de 1964 e 1985.
Meios de comunicação foram censurados. Houve tortura e morte.
Então, diante de uma abertura lenta e gradual surgiu em março de 1983 a emenda Dante de Oliveira. Ela propunha algo difícil de discordar, um consenso de verdade era nítido. A PEC pretendia reestabelecer o voto direto para presidente da República.
A discussão tomou as ruas do país, foi debatida pela sociedade à exaustão. Foram realizadas mobilizações populares inéditas em quase duas décadas de ditadura. E o texto foi derrotado no Congresso em 25 de abril de 1984. Foram meses e meses de debate em torno do assunto, para a construção de um consenso que ainda assim não foi capaz de mobilizar (totalmente) os parlamentares.
Mas houve o que não há hoje. Debate em torno de um assunto que mexe com a sociedade de maneira geral. E irrestrita Mas também não havia as redes sociais e as narrativas fincadas no pior dos argumentos: o medo.