Economia

conheça a economia de Macondo

Talvez a maior obra literária do chamado realismo fantástico, ‘Cem anos de solidão’ tem efeito magnético sobre seu leitor. E agora espectador. A obra, que virou série da Netflix, tem seu poder de atração mais na maneira particular com que retrata a realidade histórica da América Latina do que exatamente nas pinceladas de absurdo distribuídas cuidadosamente ao longo do texto.

O vilarejo fictício de Macondo, onde acontece a história, é um microcosmo da Colômbia, onde nasceu Gabriel García Márquez (Gabo), o autor do livro. Da mesma forma, a Colômbia é um microcosmo da América Latina. Por isso, as particularidades da família Arcadio Buendía, que funda o vilarejo, e tudo que o envolve, soam tão eloquentes em se tratando da região. Por isso, os brasileiros também podem se reconhecer na obra.   

E esse retrato histórico inclui a formação econômica dos países da região e consequências sociais que ela trouxe. Afeito ao nacionalismo latino-americano, que era basicamente social e emancipador, diferente do que pode ser considerado nacionalismo hoje, Gabriel Garcia Márquez faz em uma parte da obra um retrato da cobiça dos países colonizadores sobre as riquezas da região.

Um salto da colonização ao século 20

Nesse sentido, Gabo dá seu tom a um evento histórico importante – e trágico – da Colômbia do século XX: o Massacre das Bananeiras. É um resumo de como foram os períodos mais violentos da exploração de matérias-primas na região para abastecimento dos países de economia ascendente dos séculos XVIII e XIX.

Além disso, o evento retrata a consolidação da organização econômica no século XX e critica esse fato como fator que teria relegado a América Latina ao mero papel de fornecedora de terra para exportação de commodities em benefício de empresas transnacionais.

Em 1928, o governo colombiano liderou um massacre no interior do país, na cidade de Aracataca, que levou à morte cerca de 2 mil trabalhadores. O governo local temeu os efeitos de uma greve de empregados da companhia bananeira americana United Fruit Company e abriu fogo contra os trabalhadores descontentes, o que levou a um levante na região.

Cena de gravação da série ‘Cem anos de solidação’. Foto: Mauro Gonzalez/Netflix

A maneira como o autor traz fatos de diferentes épocas dos mais de 500 anos de história da América Latina e condensa tudo isso em cem anos faz com que o leitor entre em um buraco de minhoca que conecta períodos distintos, que vão da economia açucareira do século XVI até as empreitadas neocoloniais do século passado.

A cana, o ouro e a modernidade

Nesse sentido, a família em torno da qual gira toda a história da obra – os Arcadio Buendía – se instala em uma região isolada e funda o vilarejo de Macondo. Ali, durante os períodos iniciais de desenvolvimento do vilarejo, a matriarca, Úrsula Íguaran, é o retrato da figura da mulher latina em sua missão de salvar o lar da ruína física, emocional e econômica.

No que diz respeito ao dinheiro que entra em casa, a solução dada por Úrsula no período mais difícil da família é produzir doces caseiros e vender de porta em porta. Os doces são feitos da matéria-prima mais abundante da região, a cana-de-açúcar. A nova séria da Netflix mostra que, mais tarde, a matriarca passa a desenvolver outras atividades de maior valor agregado, como a confeitaria.

O patriarca e marido de Úrsula, José Arcadio Buendía, havia fundado o vilarejo ao fugir de fantasmas do passado. Depois disso, parte da sua missão passou a ser basicamente ir em direção a espectros do futuro para levar a prosperidade ao povoado.

Ator Viña Machado em cena de ‘Cem anos de solidação’. Foto: Divulgação Netflix

Ele se apaixonou pela ciência incipiente conhecida como alquimia e buscou por meio dela a comprovação da existência de Deus. Além disso, fez da alquimia seu método para criar ouro, a matéria-prima que viria a substituir a cana-de-açúcar como fonte da riqueza da região.

Da mistura da razão de Úrsula com a alma sonhadora de José Arcadio Buendía nasceu Aureliano. O filho do casal viria a reunir as características mais latentes dos símbolos latinos de época pós-colonial. Aureliano foi o ourives responsável por transformar a riqueza bruta em trabalho especializado. Depois, a figura política responsável pela modernização do vilarejo e pela manutenção do tecido social. Foi ainda, o líder militar que lutou contra uma nova colonização.

Os imigrantes

Paralelamente a esse cenário de desenvolvimento socioeconômico e luta contra o passado colonial, a América Latina construía sua identidade cultural. Tanto na nova séria da Netflix quanto no livro, essa parte é central. E dentro dela estão aspectos como a influência de povos estrangeiros sobre a cultura e economia locais.

O encontro de Macondo com os povos ciganos é o contato amistoso – talvez o único – que o vilarejo tem com o mundo exterior. É com a influência dos estrangeiros, que na nova séria da Netflix são oriundos da Macedônia, que a família Arcadio Buendía, seus vizinhos e amigos aumentam seus gostos pela arte e pela ciência.

É da relação com os ciganos que Macondo conhece Melquíades, um dos personagens mais importantes da história cujo papel é o de apresentar ao vilarejo o caldo de ciência e feitiçaria da alquimia, que passa a permear a vida dos habitantes do povoado e de tudo que o cerca.

Atriz Marleyda Soto em ‘Cem anos de solidão’. Foto: Divulgação Netflix

A economia informal e nada moralista  

Outro aspecto que marca essa parte da identidade cultural de Macondo é relacionado a atividades econômicas que são intrínsecas à história dos humanos sobre a terra: a comercialização do sexo e das drogas. Dizer que isso está no cerne das atividades econômicas mais primárias de um povo não é uma ofensa, mas uma constatação. Assim, a história é basicamente a mesma para diferentes civilizações ao redor do mundo.

O que é importante ressaltar nesse caso é o papel social que essas atividades econômicas cumpriram em um mundo de poucos recursos. A bodega de Macondo é o local onde a socialização acontece, regada a muito álcool, em diferentes ocasiões e por várias gerações.

A prostituição, que tem em Pilar Ternera sua representante de classe, por sua vez, traz consigo o conhecimento quase científico que as meretrizes tinham com relação ao comportamento humano. Em um trecho do livro, o autor diz que uma das prostitutas tinha o profundo conhecimento sobre todos os homens da família Arcadio Buendía, como nenhuma outra pessoa, mesmo da família, poderia ter.

Evidentemente, essas formas de atividade econômica trazem consigo profundos passivos emocionais, sociais, sanitários e de outras ordens. Contudo, fazem parte da ficção e da vida real e estão cravados na história de ‘Cem anos de solidão’ como parte importante da trama.

O estado contra Macondo

Bem longe de Macondo, na vida real, Freud escreveu que toda pulsão é uma pulsão sexual. Assim, para frear a pulsão de Macondo, era preciso neutralizar o caldo cultural que emergia daquele vilarejo. Era isso que o governo central queria. E para tanto incorporou à rotina de Macondo a autoridade religiosa, na figura dos padres Augusto Ángel e Antonio Isabel.

Mas, o estado moderno precisa basicamente de duas figuras centrais para estabelecer sua dominação. Além da dominação moral que o líder religioso exerce, é preciso também a dominação física. E, para tanto, o governo central coloca em Macondo o delegado Apolinar Moscote para que seja o braço do estado no que diz respeito ao uso da força.

As figuras citadas encontram o desapreço e a rejeição de José Arcadio Buendía. Nesse sentido, o fundador se orgulhava do fato de Macondo ser um vilarejo laico. Além disso, ao projetar a cidade, ele havia feito tudo de tal forma que todas as casas recebessem a mesma quantidade de raios solares durante todo o dia, o ano todo, para que nem sofressem demais com o calor, nem fossem mais beneficiadas que outras na hora de receber a sombra fresca.

Portanto, o estado era um entrave para a utopia de José Arcadio Buendía. Nesse sentido, o estado era representante das oligarquias do fim do século XIX e início do século XX, herdeiras do período colonial. E, por isso, avessas a qualquer nova forma de organização social, política e econômica.

O território como personagem principal

Nesse sentido, o estado pós-colonial, as elites que surgiram nas primeiras formas republicanas do estado moderno na América Latina e as economias do Norte em suas novas empreitadas colonizadoras podem ser compreendidas como algozes de Macondo e de seu desenvolvimento socioeconômico.

E, assim, depois que o leitor ou espectador da nova séria da Netflix conhece as dezenas de figuras de nomes sempre muito parecidos, pode perceber que o personagem principal da série não é nenhum deles em particular. Mas, sim, o próprio vilarejo.

Gabriel Garcia Marquez compreende a força que o espaço físico exercia sobre tudo aquilo que acontece dentro e a partir dele. Nesse sentido, vale mencionar Milton Santos. O geógrafo brasileiro constrói sua obra acadêmica em cima de uma ideia central: nenhum espaço pode ser dissociado dos homens e mulheres que nele habitam.

Por isso, Macondo é Úrsula Iguaran e seu empreendedorismo feminino por necessidade. É o labor científico de José Arcadio Buendía para levar o povoado ao caminho do progresso. A luta sociopolítica de Aureliano. A atividade amoral de Pilar Ternera. E todos os afazeres cotidianos e extraordinários daqueles que habitaram com seus corpos, cérebros e corações aquele pedaço de terra por cem anos.

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